Todo ser humano possui recursos, isto é, qualidades específicas que permitem estabelecer a realização de possibilidades e satisfação de necessidades. Nesse sentido, os recursos são infinitos e se tornam sinônimos de possibilidades. Acontece que tudo o que existe é evidenciado em contextos – em situações que estruturam limites e condições -, consequentemente gerando obstáculos tanto quanto os lançamentos.
Quando o ser humano percebe suas possibilidades, descobre recursos. Se esse processo, essa percepção, é realizado no contexto da autonomia, que mesmo na infância pode existir, os recursos são fontes que possibilitam relacionamentos e infinitas mudanças, satisfações e descobertas.
Quando a identificação dos recursos é realizada no contexto da não-autonomia, eles representam meios de fazer o outro satisfazer seus próprios desejos e, assim, o recurso é caracterizado pela capacidade de usar, criar condições – do engano à sedução – para que o outro realize o que é necessário.
O exercício contínuo dessa atitude cria dependências afetivas, despersonaliza e transforma as pessoas em objetos de prazer, trabalho, amor e encorajamento. Quanto mais se percebe desejos, mais se esvazia. Esse sistema de drenagem estrutura os deprimidos, os viciados, os desumanizados. Para transformar os próprios recursos, as próprias possibilidades relacionais em normas e padrões determinantes de realização de desejos e objetivos só são possíveis quando se deixa de perceber o outro como ser humano, quando se começa a percebê-lo como um objeto, como um receptáculo de desejos, como suporte para alcançar objetivos.
Transformado na expectativa do que é desejado ou esperado, o indivíduo aliena recursos e vive em função de seu investimento. A atitude não autônoma, resultante da autoreferência, aumenta continuamente a falta de autonomia, a falta de vontade, a falta de motivação e determinação. Desta forma, os recursos são transformados na busca de oportunidades que precisem de ajuda e suporte. Esta circunstancialização refere-se a tudo em termos de boa ou má sorte. Assim, o indivíduo perde a individualidade e as possibilidades humanas, tanto quanto a ansiedade aumenta para cumprir o desejado, o prometido, o esperado. Ansiedade, medo, dúvida, angústia tornam-se seus recursos constantes e únicos. Neste contexto, para não explodir, ele usa drenos representados por remédios, ajudas comunitárias, crenças protetoras e salvadoras: deuses,
Todo ser humano é cheio de recursos, no entanto, quando esvaziado pela autoreferenciação, pela não-autonomia, que, por sua vez, cria objetivos (desejos relacionados a situações totalmente diferentes e alheios àqueles que ele / ela vivencia, mas que ele / ela considera salva-vidas: de ganhar na loteria, encontrar príncipes ou princesas encantadas, ser ungido como poderoso, como alguém que pode fazer tudo), torna-se fragmentado, dividido, perde a continuidade de estar no mundo, experimentando o presente como escuridão e como uma parede que gera angústia e medo. Nessa situação de esvaziamento, de alienação e despersonalização, são seus recursos: sonhos não realizados, possibilidades e potencialidades perdidas, traumas e arrependimentos que criam medo, desconfiança, consternação e, conseqüentemente, relacionamentos frustrados, discurso amargo, dúvidas nunca esclarecidas. .
As possibilidades, os recursos transformados em necessidades criam obstáculos, dificuldades. Terras abatidas, vidas destruídas, humanidade superada e sufocada pelo uso, consumo e abuso do outro e de si mesmo. Ao usar recursos próprios para apoiar a auto-referência, a autofagia é realizada; é como se alimentar do próprio corpo para permanecer vivo.
Vera Felicidade de Almeida Campos