Mirar o outro atentamente é mais difícil do que parece: requer disponibilidade, cuidado, interesse. Mas é nesse exercício que podemos estar mais presentes, praticar a empatia e, por fim, aprofundar as relações
André Gravatá
“Dividam-se em duplas e se sentem um em frente ao outro”, disse a mestre de cerimônias de um evento de palestras. Uma senhora simpática se aproximou de mim. Óculos redondos sobre o rosto calmo. “Agora, frente a frente, gostaria que um de vocês trouxesse à tona o horror. Quais seus sentimentos mais repulsivos? Em um minuto, expresse seu lado obscuro ao parceiro ou parceira à frente.” A senhora se dispôs a ir primeiro. Seu rosto se contorceu em caretas, a boca contraída e olhos esbugalhados. Novamente a anfitriã do evento: “A outra pessoa da dupla vai fazer diferente. Ela tem um minuto para expressar o que há de mais belo e amoroso”.
Meu desafio era grande: como externalizar a beleza assim, tão rapidamente? O tempo corria e ainda não tinha decidido o que fazer. Minha mente se perdeu nas estradas de lugares-comuns; só conseguia pensar em fazer cara de anjinho, com um sorriso de ponta a ponta no rosto. Numa olhadela, observei as ações das pessoas ao meu redor. Faziam corações com as duas mãos, cara de apaixonadas, gestos de abraço. Continuei parado, sem me mexer. Só olhando para a senhora à minha frente. E resolvi mirar bem no fundo dos olhos dela, com o máximo de calibre da minha visão, transbordando entusiasmo pelas pupilas. Em alguns segundos, a senhora começou a chorar. Emocionei-me também. Juntos, eu e ela tivemos a mesma percepção: uma simples mirada é capaz de criar uma firme conexão entre duas pessoas.
O olhar atento é um sinal explícito de compartilhamento do instante. Quando estamos conversando com alguém que desloca a visão para o lado ou mesmo evita nos encarar frente a frente, emerge a sensação de distanciamento ou dispersão. O que geralmente se diz nesses momentos, para chamar atenção? “Olhe aqui!” Estar no presente demanda que a vista se mostre com vivacidade e fulgor. Durante um jantar com um casal de amigos franceses, a médica paraense Luana Aguiar se descuidou na hora do brinde e não fitou diretamente seus convidados. A esposa do casal falou para Luana, despertando sua atenção: “Na nossa tradição, dizemos `salut¿ para cada pessoa com quem você brinda, olhando nos olhos”. A partir de então, Luana começou a adotar esse costume e a transmiti-lo a seus amigos. “A visão emite pistas sobre quem somos e como estamos; deixa à mostra até o que não queremos mostrar”, diz Luana.
Também no nosso vocabulário cotidiano, é possível perceber a importância do olhar. Para assegurar algo verdadeiro, costumamos usar expressões como “evidente”, “sem sombra de dúvida”, “mas é claro”. Quando o assunto é o relacionamento entre as pessoas, afirmamos: “eles têm algo a ver” ou “amor à primeira vista”. A palavra mirari, que significa espantar-se, mirar com espanto, mirar, olhar, é a raiz de miraculum, que gerou o termo milagre, a visão de maravilhas prodigiosas. O milagre do encontro entre duas pessoas é selado com o olhar que afirma a abertura e a presença, o desejo da interação.
Enxergar não é apenas impregnar-se do mundo, trazendo para dentro o que está fora. É também abrir para o outro uma janela para que ele entre e explore parte da gente. Um instrumento da nossa capacidade de ser porosos. Uma observação atenta dispensa a necessidade de tantos vocábulos e frases – alguns dos beijos enamorados mais envolventes não têm como estopim um olhar direto?
Uma mirada acolhedora
Sempre inquieta com os limites do corpo e das relações entre as pessoas, a artista sérvia Marina Abramovic criou uma exposição intitulada A Artista está Presente, no MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Sua matéria-prima era o olhar. Na obra, Marina simplesmente se sentava em uma cadeira, sete horas e meia por dia, ao longo de quase três meses, à espera de pessoas do público que se sentavam à sua frente. Uma a uma, as pessoas trocavam um olhar atento com a artista. Marina observava cada pessoa à sua frente com uma feição catártica, como se fosse um espelho vivo. “Como deixar o artista e o público no mesmo estado de consciência, aqui e agora?”, ela se perguntava na época da performance.
As pessoas faziam fila para ver Marina. Muitos choraram ao encontrá-la. Inicialmente, havia uma mesa entre a artista e a pessoa que se colocava diante dela. Nos primeiros dois meses, ela não conseguia ficar sem o móvel. “A mesa tinha que ficar lá até eu não precisar mais dela”, conta no documentário Marina Abramovic – Artista Presente, dirigido por Matthew Akers. Sem a mesa, ela se tornou mais vulnerável e os contatos ganharam substância. Sim: quando você olha no fundo dos olhos do outro com vigor, sem barreiras físicas ou invisíveis, sua atitude estimula que o outro o veja diferente. Para o fotógrafo, pedagogo e psicólogo Cláudio Feijó, a obra de Marina é um gesto: a sustentação do olhar, uma mirada acolhedora que também é acolhida. “O que mais precisamos é ser olhados. Se não, não existimos”, comenta o artista, que realiza há quase 30 anos um workshop com o título Descondicionamento do Olhar. Perambulando por caminhos conhecidos, a visão condicionada foge da criatividade, indiferente à novidade do mundo. São as tais “retinas fatigadas” eternizadas na poesia do mineiro Carlos Drummond de Andrade.
No processo de “descondicionamento”, há uma série de exercícios, como quando Feijó dá uma imagem para cada uma das pessoas e pergunta: quantas outras fotos você consegue encontrar dentro dessa? Instiga as pessoas a apontarem distintos recortes e perspectivas de uma mesma coisa. “O olhar cria o campo das perguntas”, comenta Feijó. O que você pensa se uma pessoa desconhecida o fita detidamente por um longo tempo? Será que está apaixonada por mim? O que ela está observando? Tem algo de errado comigo? Criando o campo da pergunta, a visão abre brechas para a empatia.
O convite aberto
Contemplar o outro atentamente aumenta a espessura dos laços que nos ligam. Andando pela rua, a advogada Luciana Gerbovic encontrou um homem limpando a calçada de um prédio e, ao mesmo tempo, cantando. Não se lembra qual era a música, apenas que o tema da letra era sobre beber cerveja na sexta-feira. “Olhei nos olhos dele e então nós dois rimos”, conta a advogada. O gesto iniciou um contato que depois ganhou palavras: “Disse algo como `é isso aí¿ e ele me respondeu: `vamos ser felizes¿”. Foi o início de um contato improvável, que se estende até hoje em uma amizade reforçada a cada encontro por acaso.
O escritor e filósofo inglês Roman Krznaric vivenciou um encontro de rua que também o marcou. Costumava andar por uma esquina em que diariamente via um morador de rua. O homem denotava um tanto de loucura, geralmente falando sozinho, vestindo trapos. Nas suas caminhadas, Krznaric nunca imaginou que aquela pessoa teria tanta coisa em comum com ele. Certo dia, o filósofo parou e começou a conversar com o homem sentado no asfalto. Para sua surpresa, o morador de rua havia estudado filosofia na Universidade de Oxford nos anos 70. Conversaram, então, sobre diversos pensadores, de Marx a Nietzsche. “Quando eu olhei nos olhos daquele homem, entendi o quanto isso importava para ele, porque geralmente ele estava acostumado a se deparar com pessoas que andavam reto, sem vê-lo. De certa forma, penso que avistei nos seus olhos o desejo de ser reconhecido e respeitado. Nós todos queremos isso, não?”, comenta o escritor.
A empatia pode nos inspirar a tomar alguma atitude em prol do outro e, mais, ainda melhorar a qualidade da nossa própria vida, devido ao cultivo de relações mais profundas. Que tal, uma vez por semana, buscar uma conversa com alguém que você não conhece bem, olhando nos seus olhos? Esse é um desafio que Krznaric propõe para exercitarmos a empatia, que também é o tema do seu último livro, intitulado Empatia: Manual para uma Revolução. “Também conheço inúmeras pessoas cegas que são incrivelmente empáticas – elas são boas escutadoras”, completa. Mesmo que a vista seja emblemática num encontro, essencialmente estamos falando de contatos em que as pessoas estão atentas ao presente – o olhar não acontece somente pelos olhos.
Em uma visita recente à Índia, encontrei algumas pessoas que me encaravam muito diretamente. Estariam exercitando sua empatia, perguntando-se como é a vida de um brasileiro? Em uma passagem rápida à casa de um amigo de um amigo, numa pequena cidade, encontrei uma família que parecia me varrer com os olhos. Lá, pela primeira vez me dei conta de uma coisa: o olhar atento é um convite. Um convite aberto, enraizado no campo das perguntas, que expressa disponibilidade, curiosidade, cuidado. Como o convite que lancei para a senhora que encontrei naquele evento, que a fez chorar. Como o convite que a Marina Abramovic sustentou ao longo de meses, provocando um acolhimento recíproco. Como o convite de Krznaric, gerando uma empatia impregnada de respeito e compaixão. Na próxima vez que estiver diante de alguém, pergunte-se se você está realmente percebendo a pessoa à sua frente. Qual é o convite que o seu olhar faz para o mundo?
Fonte: http://vidasimples.uol.com.br/noticias/pensar/a-importancia-de-olhar-nos-olhos.phtml#.WxMppEgvxPY